“There is no refuge from change in the cosmos”
Carl Sagan
Nos últimos tempos, mergulhei de cabeça em duas séries de TV antigas que me cativaram, maravilharam e fizeram refletir um bocado: O Poder Do Mito (que contêm 6h de entrevistas concedidas por Josephn Campbell a Bill Moyers sobre “temões” como mitologia, sabedoria e o sentido da vida…) e Cosmos (“Épico Científico” de Carl Sagan em 13 fascinantes episódios!). Já não sei decidir quem destes dois instigantes mestres tem mais a nos ensinar, se Sagan ou Campbell. Mas ainda bem que não precisamos escolher um e excluir o outro: ouçamos (e sejamos alunos…) de ambos! Pois um dos maiores privilégios daqueles que assumem na terra a humilde condição de aprendizes-da-vida (e na-vida!) é o fato de nada impedir que aprendam de vários professores. E que possam aprender até mesmo das estrelas que não falam e dos espaços escuros entre elas: “the great dark between the stars”, aquele misterioso negrume que deixava Pascal apavorado mas que parece chamar Sagan com a força encantatória de uma esfinge imensa…
Carl Sagan e Joseph Campbell, me parece, são ambos mestres na arte do maravilhamento. Eles chaqualham nossa apatia esparramando diante de nossas consciências uma procissão de mistérios. “Há mais estrelas no universo que grãos de areia em todas as praias do planeta Terra…”. Sagan nos convida para olhar para cima: não para louvar um Deus que estaria sentado em sua nuvemzinha, gerenciando sua obra, mas para que tomemos ciência da incomensurável grandeza do Mistério que temos diante de nossas consciências. Como não se assombrar com a vastidão de tudo e a pequenez de cada um de nós, seres humanos, como que esquecidos como um trapo num canto remoto de uma das bilhões de galáxias que compõe isto que nenhuma palavra ou conceito explica: o “Universo”, o “Ser”, o “Todo”… (Ah, miséria das palavras!!!)
Partir na jornada de decifração dos enigmas do cosmos é também partir numa jornada de auto-conhecimento: o que somos nós nesta misteriosa maquinaria cósmica? Como pôde acontecer esta espantosa coisa que é existir um Universo assim tão imenso e, dentro dele, contidos nele, criaturas tão estranhas e desnorteadas como nós?!?
Estes dias deparei com um assombro semelhante no livro de Thomas Nagel que estou lendo, o Visão a Partir de Lugar Nenhum (The View From Nowhere, lançado pela Martins Fontes):
“Eras se passaram sem que existisse algo como eu, mas graças à formação de um organismo físico particular, num lugar e tempo particulares, repentinamente passei a existir, e existirei enquanto esse organismo sobreviver. No fluxo objetivo do cosmos, esse evento subjetivamente estupendo (para mim!) mal chega a produzir uma leve ondulação… Somos todos sujeitos do universo sem centro… sou um sujeito que pode ter uma concepção do universo sem centro na qual Thomas Nagel não passa de um pontinho insignificante que facilmente poderia nunca ter existido.”
Até os que sabem mais não sabem muito. O Universo – eis talvez a principal “moral da história” para quem assiste Cosmos… – prossegue sendo um gigantesco mistério.
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II. ALUMBRAMENTO
Não acho que seja lá muito proveitoso rotular um ser humano com “etiquetas intelectuais”, rótulos classificatórios… Por isto vou tentar não cometer nenhum tipo de reducionismo preguiçoso ao lidar com a figura de Carl Sagan, imprimindo nele um “carimbo” para melhor identificá-lo no meu mumificado mundinho mental ressecado… Quero uma mente desperta, que nada tenha de burocrática, e o próprio Sagan é exemplo vivo de que este estado de lucidez de consciência só se conquista quando evitamos ceder às tendências preguiçosas de nossos cérebros acomodatícios e olhamos nossos entornos com a curiosidade viva e espantada de uma criança – ou de uma criatura que acabou de chegar do espaço…
Sagan, pra mim, é antes de tudo uma pessoa que procura despertar nos outros um “senso de maravilhamento”. A sense of wonderment. Apesar de ser possível interpretar sua “atitude” como a de um cientista muito “convencido” e seguro de si que fala com a duvidosa autoridade de quem pensa ter descoberto todas as respostas, isto seria uma falsa imagem. Acompanhar Sagan através da série é descobrir um homem que observa o Cosmos com um olhar assombrado, boquiaberto, plenamente ciente de que há profundos mistérios irresolvidos e outros ainda sequer sondados…
O que Sagan mais quer é que a gente se deslumbre —- e um programa de TV como o Fantástico, que eu assistia direto quando pivete, antes de ter chegado à conclusão de que a Rede Globo era uma ofensa ao meu cérebro, deve muito ao “espírito” de Sagan (apesar de carecer de 90% de seu insight e talento). O principal efeito que Sagan procura gerar em nossas consciências com seu Cosmos não é a submissão a teorias que ele nos imporia como verdades inegáveis, mas sim um espanto deslumbrado diante do novo, do inefável, do imensurável, do nebuloso, do misterioso, do enigmático e do sublime…
Em vários momentos da série isto chega a beirar o piegas, o kitsch, o corny… Em seus momentos menos inspirados, Sagan pode até aparecer a um espectador mais irônico como um caricato abraçador-de-árvores, que fica dando beijinhos nas rosas e falando hipponguices de eco-chato: um cara assim, meio Greenpeace e P.V., que talvez nutra simpatias pelo hare krishna e pelas músicas do George Harrison que contêm cítaras… Estou chacoteando, mas juro que é com carinho…
É que, por mais que eu o admire, não consigo conter minha ironia quando, em vários momentos, irrompe aquela bizarra trilha-sonora meio new age, meio Kitaro e Enya (blargh!), tudo rodeado por um colorido artificialesco que lembra O Mágico de Oz e os primórdios da computação gráfica… Mas não dá para exigir de um cientista que possua bom gosto estético, certo? Mas suas duvidosas escolhas estéticas não são desprovidas de uma certa magia: pois Sagan parece não se deslumbrar somente com o Universo, mas também com a magia do cinema, por vezes tentando assumir na tela uma atitude de Indiana Jones ou Luke Skywalker da vida-real… Infelizmente, Sagan não é nem metade tão bom ator quanto é bom pensador. Mas ao menos isto deixa Cosmos com um certo sabor humorístico involuntário que é um de seus charmes. E não falta charme mesmo nas cenas mais “metidas a bonitinhas” onde vemos borboletinhas pousando em rosas, vaga-lumes piscando na noite como pequenas estrelas aladas ou dandelions soprados pela brisa matinal… É, confesso, um guilty pleasure irresistível.
Já os efeitos de computação gráfica, para nós da era de Avatar e da trilogia Toy Story, são aquela “tosqueira” que dos anos 1970 e 80 que hoje lamentamos (“tão primitivos! E tão feiosos!”, seria tentado a queixar-se um amante dos eye-candys da nossa atual Sociedade do Espetáculo circa 2.010…). Mas não acho que estraguem o caldo. Ao contrário: o conteúdo, de longe, compensa pelas limitações da forma.
Pois não há como negar que a série é, em geral, muitíssimo bem-sucedida em elucidar para o espectador de modo cativante, compreensível e sedutor várias dos mais importantes empreendimentos científicos da jornada humana, do átomo de Demócrito ao heliocentrismo de Copérnico, do mapeamento das órbitas planetárias de Kepler à decifração do Genoma humano, do evolucionismo de Darwin à relatividade de Einstein…
Em seus melhores momentos, Carl Sagan parece alçar-se ao nível de alguma das maiores mentes do Iluminismo francês, como uma espécie de Voltaire norte-americano, capaz de ferinas ironias e aparentemente apto a reter em sua mente um conhecimento tão vasto que mereceria um adjetivo bem à la Diderot e D’Alembert: “enciclopédico!”
Mas há outras sociedades que, bem mais que a sociedade francesa circa-1789, que Sagan parece ver com extrema simpatia quando faz um “passeio histórico” pelo passado humano. As civilizações que ele parece descrever com maior carinho são aquelas da Grécia pré-socrática, entre 400 e 200 a.C., quando viveram e pensaram Demócrito, Tales de Mileto, Anaxágoras e tantos outros precursores da ciência moderna; a Alexandria durante os anos de profundo cosmopolitismo e discussão científica e filosófica, antes da queima da Grande Biblioteca; e a Holanda do século 17 – aquela de Rembrandt, Vermeer, Huysgens etc.
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III. WE ARE STARDUST
“The cosmos was originally all hydrogen and helium. Heavier elements were made in red giants and supernovas and then blown off to space, where they were available for subsequent generations of stars and planets. Our sun is probably a 3rd generation star. Except for hydrogen and helium, every atom in the sun and the Earth was synthesed in other stars. The silicon in the rocks, the oxygen in the air, the carbon in our DNA, the gold in our banks, the uranium in our arsenals, were all made thousands of light-years away and billions of years ago. Our planet, our society and we ourselves are built of star stuff…”
A série tenta dar respostas sensatas e ponderadas para muitos temas de vasto interesse popular (e que encheram por décadas as páginas de revistas como a Superinteressante, a Galileu e a Mundo Estranho, que muito devem ao “espírito” de Sagan, ainda que também deixem a desejar em termos de aprofundamento…): da possibilidade de uma viagem no tempo aos OVNIs, da origem da vida à composição química das estrelas, de futuras missões inter-estelares a cálculos sobre o número de civilizações inteligentes possíveis no Universo, a série não se recusa a averiguar hipóteses. E até afirma que é verdade certas “coisas” de deixar bestificado de espanto qualquer um de nós: somos, afinal de contas, feitos de poeira estelar! Nenhum dos átomos que compõe nossos corpos, nenhum dos átomos que compõe tudo o que existe neste planeta, foi gerado por aqui mesmo. Tudo o que conhecemos é construído com “tijolinhos” gerados nos bilhões de úteros das estrelas e depois esparramados pelo vasto, escuro e frio espaço…
We’re all stardust, harvesting star light!
Mas nem tudo é poesia e alumbramento nesta jornada: a série foi produzida com a adrenalina dos tempos de crise e em muitos momentos nota-se uma certa “tensão” no ar, natural de um seriado concebido e gravado nos anos 70, não muitos anos depois da Crise dos Mísseis em Cuba que ameaçou esquentar a Guerra Fria, pondo assim em risco a sobrevivência de todo o planeta. Cosmos é um seriado assombrado pelo fantasma do Apocalipse Nuclear. De modo que soa às vezes como uma espécie de “levante” de um grande cientista norte-americano que ergue-se, soando barulhentos alarmes, como se quisesse impedir que Hiroshima se repita. Em certo sentido, é como se seguisse o conselho de Theodor Adorno de que a educação depois do Holocausto deveria ter uma de suas tarefas cruciais “evitar que Auschwitz se repita”. Sagan protesta com veemência, p. ex., contra o trilhão de dólares anuais que o mundo, em sua época, dedicava a gastos militares. E nossa época não está muito diferente, como sabe qualquer um que consulte as verba$$$ suntuosas que os EUA dedicam ao militarismo.
Sagan foi também um destes que embarcou na onda da “globalização” de um modo festeiro e utópico, supondo de modo talvez otimista em excesso que a fraternidade humana estaria sendo construída pelas facilitações tecnológicas na comunicação e no transporte que possibilitam nosso atual estado de inter-conexão global. Elogia o cosmopolitismo e a abertura a outras culturas e tradições, como quem bem sabe que somos todos uma só espécie sobre um planeta que, quando visto do espaço, não possui fronteiras.
Defende o método da ciência, segundo o qual “a única verdade sagrada é que não existem verdades sagradas”. Lança sua abominação sobre o obsceno número de armas nucleares nos arsenais de tantas nações, sobre a desnecessária matança das baleias e contra o deflorestamento, e já insistia desde então nos perigos do aquecimento global e do Efeito Estufa. E nos mostrou muito bem, no caso de Marte e Vênus, que desgraceira pode decorrer da gente zoar com nossa camada de ozônio…
Não fala em Gaia, mas a deusa está presente por toda parte.
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IV. Blues for a Blue Planet
Há, sim, algo de potencialmente deprimente nesta viagem de descoberta. Na vasta imensidão do Universo, somos algo inegavelmente minúsculo. A astronomia esmaga qualquer pretensão humana de gigantismo: somos anões num planeta medíocre de uma galáxia qualquer. Não há nenhuma evidência confiável de que alguma espécie de outra civilização de outro planeta tenha entrado em contato conosco: por enquanto, não encontramos nada que negue a hipótese de que estamos sozinhos. Nossos telescópios vasculham cada centímetro cúbico dos céus, com criaturas por detrás das lentes sedentas por diálogo, e as estrelas prosseguem em silêncio. É o que apavorava Pascal: “le silence éternel de ces espaces infinis m’effraie…”. É o “silêncio das estrelas” de que se lamenta Lenine numa de suas mais melancólicas canções: “amanheço mortal…”
Cosmos fala pouco sobre a morte, como quem por polidez evita um tema penoso. Mas, ao falar sobre o universo e sua grandeza quase inimaginável, faz com que nos confrontemos com o fato irrecusável da pequenez e da fragilidade da raça humana. Ao mesmo tempo que nos abre frente aos olhos um imenso leque de façanhas que esta mesma espécie conquistou: não há em nenhum outro canto do Universo conhecido nada que se assemelhe a nós. Não conseguimos, por enquanto, nos deparar com outros seres conscientes habitando este cosmos tão repleto de “coisas” que existem em total ignorância de si mesmas, inconscientes de sua própria existência.
Tudo indica que fomos só nós, nesta imensidão da matéria, que “despertamos”. E talvez seja algo muitíssimo raro isto que aconteceu neste planetinha: a matéria chegando a uma organização tal que fez surgir a Consciência. É sinal que a matéria tem espantosas propriedades, já que nos gerou, a estas espantosas criaturas que somos!
O córtex cerebral não é menos fantástico que uma galáxia distante. E pensar que há mais neurônios dentro da cabeça de cada um de nós do que há grãos de areia em todas as praias do planeta Terra! Temos um imenso universo dentro do crânio. Um universo capaz de consciência de si mesmo, o que o universo lá fora não é capaz de alcançar, ao que parece… É que a consciência tinha que começar em algum lugar? Pois bem: talvez sejamos este começo, o que já é missão nobre.
E que faz com que seja importantíssimo não deixar que esta chama se apague. Bilhões de anos foram gastos neste “produto” espantoso da Natureza: matéria viva e consciente. E agora temos em mãos a sombria e inquietante possibilidade de jogar isto fora e desfazer uma obra-prima da Dança Cósmica…
A Dança de Shiva
Somos minúsculos, é verdade, mas também somos raros. Somos pequenos, é verdade, mas para cada uma das células que nos compõe talvez sejamos do tamanho de uma galáxia, e tão misteriosos e incompreensíveis quanto…
E somos, é claro, o único ponto em todo o Ser onde há busca pela verdade, pela compreensão, pelo sentido. É claro que Carl Sagan não nos explica qual é o “sentido do Universo”: seria muito megalomaníaco e francamente antipático se sustentasse ter a solução para este profundo enigma. É óbvio que a Ciência não tem uma resposta para isto, o que salva a Filosofia de cair na inutilidade, e a reabilita para os séculos porvir.
Afinal de contas, a tentação de abraçar a hipótese de um deus prossegue, já que parece necessário que algo tenha sido o Primeiro Motor ou o Criador de toda esta miríade de galáxias – a watch implies a watchmaker. Mas o fato da humanidade ter inventado a hipótese Deus me parece apenas uma tentativa simplória de tentar dar conta de um mistério que ainda estamos longe de desvendar. Àqueles que se sentirem tentados a abraçar a confortável hipótese de um deus criador de tudo depois de assistirem Cosmos, sugiro que antes tem um passeio por outra grande mente científica de nosssos temops: Richard Dawkins, o grande desilusionista… Sim: de onde diabos “saíram” todas as estrelas, planetas, buracos-negros, tudo que existe? O que é o diabo deste “espaço” (aparentemente infinito…) onde tudo isso bóia, viaja e existe? Quem foi que colocou em movimento esta incessante correnteza cósmica que não conhece um só segundo de remanso? De onde saiu toda essa matéria, todos esses átomos, toda essa luz? Sempre existiu ou um dia começou? Tem sentido ou somente existência? É eterno ou conhecerá um dia o nada?
Tudo, ainda, profundos mistérios. E vasto alimento para o nosso espanto.
Publicado em: 27/08/10
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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